Conheça Lívia Magnoler, praticante de dança de salão, surda oralizada e usuária de Implante Coclear

Neste mês, apresentamos aos leitores a história de Lívia Magnoler, de Lins/SP, praticante de dança de salão e associada ADAP. Lívia nos trouxe um belíssimo relato sobre a sua trajetória, destacando especialmente sua relação com a dança e com a descoberta posterior do mundo dos sons (ela perdeu a audição ainda criança e foi implantada apenas na idade adulta, depois de anos já atuando como dançarina). Não deixe de conferir a emocionante história de Lívia a seguir.

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“Sou Lívia R. M. Magnoler, moradora de Lins/SP e assistente social atualmente aposentada. Nasci ouvinte, em uma pequena cidade do interior do Paraná. No curto espaço da infância até os quatro anos, quando tive sarampo, era uma criança “normal”, com as travessuras típicas da idade. À época, o tratamento da doença era feito com Garamicina, antibiótico altamente ototóxico e, a partir daí, perdi a audição, embora os diagnósticos não confirmem a causa do fato.

Minha surdez foi confirmada na fase pré-escolar (1964), após o chamado da professora, o que levou meus pais a procurarem centros médicos especializados, confirmando o diagnóstico como irreversível e jogando por terra os sonhos de jovens pais em ter filhos “perfeitos”... O “filho real” passou, de repente, a ser tão diferente do “filho ideal”...

E assim vieram as reações iniciais de negação, culpa, ressentimentos, até a aceitação e o entendimento para a busca por uma possível “cura” ou algo que pudesse amenizar o problema. Na época, tais recursos eram quase inexistentes e a Fonoaudiologia era profissão quase desconhecida, pouco divulgada. E eu, pela pouca idade, ainda não tinha muita noção do que viria pela frente e do que seria ficar surda.

Não consigo me recordar da época de quando me descobri surda e de alguma dificuldade que possa ter ocorrido inicialmente. Acho que ainda não tinha muita noção desta “diferença”. Minha única lembrança é o fato de que, ao sentir que não podia ouvir as pessoas, passei a prestar atenção redobrada em seus rostos e lábios e, por estes mistérios insondáveis da vida, desenvolvi a LOF (Leitura Oro-Facial ou leitura labial) sem nenhum auxílio profissional. Tentamos a protetização, extremamente traumática, pois não existia, na época, o preparo profissional que encontramos atualmente, e rejeitei veementemente o uso de qualquer aparelho auditivo. Enfim, passei toda a vida com a LOF.

Independente de todos os percalços enfrentados por meus pais, sempre fui aluna em estabelecimento regular de ensino, mesmo com as orientações recebidas para que eu fosse internada em escola especial para educação de surdos, o INES – SP, no qual me recusei em permanecer. Em 1964, aos seis anos, com a confirmação efetiva da surdez, os professores foram informados e orientados a me colocar na primeira carteira central e falar sempre de frente. A dificuldade maior sempre foi quando os mesmos se voltavam para a lousa, dando explicações e os famosos “ditados”.  Os reforços, tarefas e leituras extraescolares e o auxílio da família foram de extrema importância para meu desenvolvimento escolar nesta fase. Foi marcante, também, a consciência de ser surda quando sofri os primeiros “xingamentos”, atualmente nomeados de bullying.

Sempre tive interesse pelo estudo, especialmente em Ciências, Língua Portuguesa e Piano, que aprendi a tocar praticando por uns seis anos e talvez isso tenha sido o estímulo para a prática atual de dança de salão, desde 1996. Os ritmos musicais eram captados através da vibração dos sons pelo espaço, tocando o coração... Costumo dizer que minha pele e minhas mãos “ouvem” melhor que meus ouvidos!

Em algum período da minha trajetória de surda, talvez eu mesma possa ter me afastado dos amigos e das pessoas, pois alguma coisa instintiva me permitia reconhecer momentos e situações nos quais me sentia insegura ou com medo de não conseguir participar ou estar presente. Existiram sim, muitos e intensos momentos de medo, dor e revolta, momentos em que sofria discriminação, descrença e agressão verbal de algumas pessoas (até as esclarecidas e profissionais), mas, quando a gente consegue conversar com nossos medos, descobrimos que eles não são tão assustadores assim...

Preconceitos existem, e sempre vão existir, independente de qualquer esforço que façamos para nos colocar como “normais” diante do que quer que seja a “normalidade” das pessoas ou da vida. O que as pessoas consideram “normal” ? Ou “diferente”? Não sei... Não posso responder por elas... Mas existe, em cada ser, um algo de infinitamente inexplicavel, que as aproxima ou afasta do que elas consideram fora dos seus padrões referenciais.

O Ensino Médio foi o período da minha vida em que mais senti a discriminação por ser surda e isto veio justamente da classe médica, que considerava impossível uma surda fazer o Curso Técnico em Enfermagem, além de estágios e trabalhos em um hospital. Mas eu era “encantada” por tudo o que se referia à Enfermagem. Serviço Social foi minha segunda opção, e me formei em 1981, ingressando na Saúde Pública. Antes disso, já estava concursada como Técnica em Enfermagem. Com a Faculdade, fiz ascensão funcional.

Quando as matérias eram mais complexas, pedia aos professores indicações de livros para facilitar o entendimento da disciplina e do que era exposto em sala. Alguns anos depois, fiz MBA em Saúde Coletiva e Política Social e o tema do meu TCC foi “Um novo olhar sobre o diferente – a inclusão da pessoa com deficiência”.

Finalmente, em 14 de outubro de 2009, foi realizada a cirurgia para o Implante Coclear na minha orelha esquerda, sendo o aparelho ativado em 13 de novembro do mesmo ano. Conforme comentado  anteriormente, nunca consegui me adaptar aos Aparelhos de Amplificação Sonora Individual, mesmo porque meus primeiros contatos com o AASI foram extremamente traumáticos.

Com 47 anos de privação sonora, praticamente sem memória auditiva, e durante minhas pesquisas para o TCC, comecei a ter informações sobre o Implante Coclear. Pesquisei e li muito sobre os beneficios do mesmo e meu primeiro contato com uma equipe profissional foi no Hospital Iguaçu, em Curitiba/PR. Após muitos exames, avaliações e várias sessões de terapia psicológica, fui encaminhada à Equipe Coração da UNICAMP para nova avaliação.

De inicio, foi descartada a possibilidade da cirurgia, devido ao tempo de privação auditiva e, também, pela minha recusa em usar AASI. Assumi a responsabilidade de fazer uso do mesmo por um ano, tentando superar os traumas de infância, até passar por nova avaliação, exames e ser aprovada para o Implante Coclear. Com todo o acompanhamento terapêutico e fonoaudiológico, fui me preparando para entrar no mundo dos sons. Um mundo que estava (e ainda está) muito além da minha compreensão e do meu entendimento...  “Sentir” e “ver” os sons ultrapassava todo o meu entendimento...

A ativação foi surpreendente e assustadora, inicialmente incompreensível.... Muita dificuldade no entendimento do que se revelou ser o mundo sonoro, que é extenso em sons, barulhos, ruídos. Alguns agradáveis, outros estranhos, outros parecidos com os que eu havia lido e sentido.... Muitas lágrimas de frustração e dor, sorrisos de encantamento, deslumbramentos diante daquilo que a gente nem imagina ser sonoro... Coisas incompreensíveis que se tornaram referências na memória auditiva...  Sons perdidos numa vida de silêncio total e absoluto, que entraram reveladores, tocando o fundo da alma. E, como dizem, nada existe a perder quando se tenta alcançar um sonho.... Gradualmente, ir conhecendo as vozes do mundo, foi uma revelação cheia de surpresas e novas descobertas.

Também foi e ainda é bastante estressante lidar com a descrença daqueles que não acreditam que o Implante Coclear exige longo e extenso trabalho de adaptação e preparo para o entendimento sonoro, fazendo comentários maldosos do tipo curto e grosso: “Ué, se você fez essa cirurgia, tem que ouvir e entender tudo... não precisa ficar lendo minha boca para entender o que estou falando.”. Ou mesmo: “Pra que fez essa cirurgia se não consegue falar no telefone? Não acredito!”. Mas, parafraseando Carlos Drummond de Andrade ("Quantos caminhos até chegar a um beijo... que solidão errante até chegar a sua companhia..."), eu digo "Quantos caminhos até chegar a um som... que silencio profundo até chegar a uma melodia...".

Neste momento, a gente se sente mais ligada às pessoas, talvez porque, através desta maravilhosa tecnologia que é o Implante Coclear, passamos a estar inseridas em um outro mundo, onde vivemos um constante e diário processo de aprendizado de ouvir e compreender aquilo que, antes, nos era insondável e misterioso.

Como eu falo? Com aquela voz inconfundível, de “sotaque” dos surdos. Sempre fui criada na Oralidade. Não sei LIBRAS. Tentei aprender, mas não consegui me identificar com a língua de sinais. Após o Implante Coclear, intensificamos os trabalhos em fonoterapia para o aprendizado sonoro e melhora da voz. Segundo minha fonoaudióloga, minha voz melhorou muito, mas ainda precisamos desatar um “nó” interior para que ela chegue naquele tom que dizem ser gostoso de se ouvir.

Comecei a praticar dança de salão em 1996, ainda surda, levada apenas pela necessidade de praticar uma atividade fisica diferente e que me proporcionasse um maior contato com as pessoas e onde eu pudesse me “soltar” um pouco mais. As dificuldades iniciais foram as mesmas que as de um aluno ouvinte no aprendizado dos passos e colocar os mesmos no ritmo da música. Tive que aprender a fazer isso apenas no “sentir” a vibração dos sons e dependendo muito dos professores e parceiros para me ajustar aos ritmos.  Na verdade, a música sempre foi algo desconhecido para mim e não fazia parte da minha vida.

Todos os professores com os quais fiz aulas, acredito que, inicialmente, devem ter se sentido um tanto receosos, tipo assim, pensando “Como vou ensinar uma surda a dançar?”.  Depois, o aprendizado foi fluindo naturalmente e, quando dei por mim, estava ja no que consideram o nivel intermediário da dança. Todos foram maravilhosos e muito me incentivaram a continuar esta prática.

Depois do implante, ao retornar às aulas de dança, o professor, antes de colocar para tocar uma música, me disse: “Esta é para você!”. Foi a primeira vez que ouvi, alem de “sentir” os acordes de um Tango, meu ritmo preferido... Até hoje não consigo descrever isso!

Ainda, mesmo após o Implante, não consigo acompanhar a letra de uma canção que toca. Se tiver em mãos a letra, ainda acompanho um pouco, mas só de ouvir o ritmo, a melodia, aquilo que toca forte, as “batidas”, o som marcante dos compassos (forró, tango, bolero, samba, etc...) me tornou mais segura daquilo que estou fazendo e, com certeza, elevou minha a autoestima... Quando passeamos pela vida, no compasso da dança, somos capazes de conhecer o sabor da transcendência... A vibração da música, além de entrar pelo Implante, entra por todos os poros, despertando a alma e transbordando em movimentos.

A dança, além de integrar, interagir, inserir e incluir, traz desafios intensos a cada passo, a cada conquista realizada. Fazer os passos por “imitação” daquilo que o professor faz, é fácil... Difícil é fazer com que cada movimento tenha o seu toque, seu charme, sua personalidade... Somos intérpretes daquilo que toca. Temos que sentir, mais do que ouvir... Temos que lapidar a dança em harmonia com o parceiro para reluzir em conjunto. O trabalho é muito próximo. Temos que tocar,  pegar, abraçar e dançar com o parceiro. É um aprendizado constante de respeito, solidariedade, amizade e admiração mútuos.  Ouvir ou não ouvir não vai mudar isso. Nosso trabalho persegue o brilho, irradiado pela perfeição das técnicas e dos movimentos. Lá na frente, vem a recompensa, quando a música cessa e surgem os aplausos. Eles são a recompensa imediata de que o trabalho foi reconhecido e o maior sinal de que a conexão foi estabelecida. A alma parece ficar mais leve...

Uma deficiência não nos impede de sermos eficientes e todos nós somos capazes de realizar sonhos, construir vidas, percorrer caminhos nunca antes imaginados. É claro que alguns momentos podem ser dolorosos, insuportáveis, dificeis e que algumas situações possam não ter sido superadas ou compreendidas, mas isso tudo faz parte de um longo  processo de crescimento pessoal... Cada um a seu tempo, à sua maneira e com as condições de que dispõe.

E, como diz Isadora Duncan: “Se eu pudesse dizer o que as coisas significam, não teria necessidade de dançá-las”. Todas as apresentações de dança exigem preparo, tempo, dedicação, concentração... E todas elas, cada uma em especial, teve seu momento de beleza, brilho e pesonalidade... Em cada lugar, a gente encara teatros, arenas, palcos, ruas... Vemos rostos conhecidos e desconhecidos... A repetição nunca chega a ser repetição. A cada apresentação, mesmo quando executamos a mesma coreografia, nunca estamos dançando a mesma coisa. A dança se reinventa a cada dia... Dançar é Magia... Com o Implante Coclear, é Liberdade... E quando juntamos as duas coisas, é transcender o tempo e o espaco através do movimento...

A dança é uma metamorfose ambulante... Constante transformação do ser para o entendimento do que se passa na alma... É este o presente eterno que deixo a cada pessoa que esteve ao meu lado durante minha trajetória pela vida... E cada uma delas sabe quem é e o significado especial que tem em meu coração.

 

Lívia R. M. Magnoler”.

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